sábado, 19 de abril de 2008

no cinema

Me olha como quem nunca me viu,

Me atravessa como se atravessam rios,

Fecha a porta, tudo atrás fica escuro,

Vai deixando no passado o que hoje era futuro,


Vai descendo aos poucos a escada,

E aos poucos tudo é nada, nada posso fazer.

Meus olhos na janela, os seus na rua;

Evaporam-se tuas lágrimas.


Duas semanas antes, no cinema,

Tive a intuição:

Choraste a toa ao ver uma cena

De um beijo firme e suave no fim.


Eu disse: boba, é só um filme,

Você disse com a voz trêmula: somos ficção.


Olhei um porta retrato antigo;

Algum de nós já não sentia aquele amor.

Seus lábios estão petrificados e encardidos

De alguma coisa que o tempo esconde dentro de nós.


E hoje, quando cheguei do escritório,

Me olhaste, e foi pela última vez.

Cansou-se da poeira do apartamento,

E de assistir sempre aos telejornais.


Me disse decididamente um “adeus”

Que reprimira, quando a esperança era quase amor,

E essa palavra veio em câmera lenta,

E eu demorei pra ouvir e entender: adeus.

Adeus.


Me olhou como quem nunca me viu,

Me atravessou como se atravessam rios,

Fechou a porta, permaneci escuro,

Foi deixando um presente que nunca aconteceu,


Foi descendo aos poucos a escada,

Quis gritar, mas não tive coragem.

Meus olhos na janela, os teus na rua;

Já não necessitas lágrimas, és sublimação.

terça-feira, 8 de abril de 2008

cruzeiro do sul

Sou amigo das estrelas desse céu mais azul,

tenho uma constelação junto ao cruzeiro do sul,

tenho os pés na terra, e a terra firme dentro de mim.


Mas inda brota a flor silente, ensangüentada em meu jardim.

O meu sangue é luso-negro, ítalo-guarani.

Minha força é meu apego, vingança, sucuri.

Meus olhos não esquecem a cor da carne dos meus avós.


Mas inda brinco de cantor, poeta, sou guri

miolo mole, cabeça dura de jabuti.

E a cachoeira deságua a mata em meu coração.


Mas persiste um dissonante dilema no ar

quando se encerra o cerrado em cinza, fogo e carvão.

Na arrevoada da garça branca do pantanal:

no entardecer haverão onças e cobras, ou escuridão?

Ou só escuridão?

Ou só escuridão?