terça-feira, 3 de março de 2009

Mosaico

Sinto arder em meu peito um turbilhão de palavras desconexas
Resvalando uma nas outras. Conturbadas, perplexas.

Querem todas sair de uma só vez, jorrar,
Mas a boca não é capaz de as pronunciar.

Não têm idioma, sentido ou vernáculo.
Acumulam-se como que através de um século.

Tento organizá-las, aglutiná-las, criar alguma expressão:
É inútil, são arredias e fogem a qualquer compreensão.

E como pesa a palavra não dita!
Lavrá-la é como buscar pepita.

Rumino, balbucio e, exausto, grito.
Nenhum efeito, o peito pulsa aflito.

Resignado, calo-me, e no meu silêncio tenho a impressão
De que sedimentam-se cacos de palavras no fundo oco do meu coração

Formando um confuso mosaico onde lê-se sob o pó
Turva e quase imperceptível, mas contundente, uma palavra só:

Angústia.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

ESTAÇÃO POPULAR

Eu to olhando o tempo faz um tempo,

Não vejo um movimento, nem uma brisa no ar.

Parece que essa nuvem de fumaça,

não chove, não desembaça, não deixa a gente cantar.


e estas previsões bem inventadas

que nunca acertam nada, vendem falsas estações.

o sol, quando é verdade, brilha forte,

não vai ser nenhum repórter que vai soprar furacões.


então por que não desliga a tevê,

dá uma volta fora e vê se é dia de chuva ou canção?

eu prefiro tomar chuva na cara

do que ver sol da janela e ouvir música em estação ...popular.


debaixo desse sol não há nada novo não,

a cobra ainda sai do ovo e se rasteja pelo chão.

e eu, como meus pais e meus avós,

ainda atado nesses nós de futebol e carnaval.


o homem já cagou na lua,

mas na minha rua ouço ecos nos botecos das esquinas.

onde poetas mortos ganham vida,

contam piadas repetidas do tempo das marchinhas.


não é nada contra antigas escrituras,

mas da arte em sepulturas só brotou fungo e capim.

nessa terra, plantando, tudo dá,

mas é preciso então plantar, pra não comer mais só jabá... com aipim.

sábado, 19 de abril de 2008

no cinema

Me olha como quem nunca me viu,

Me atravessa como se atravessam rios,

Fecha a porta, tudo atrás fica escuro,

Vai deixando no passado o que hoje era futuro,


Vai descendo aos poucos a escada,

E aos poucos tudo é nada, nada posso fazer.

Meus olhos na janela, os seus na rua;

Evaporam-se tuas lágrimas.


Duas semanas antes, no cinema,

Tive a intuição:

Choraste a toa ao ver uma cena

De um beijo firme e suave no fim.


Eu disse: boba, é só um filme,

Você disse com a voz trêmula: somos ficção.


Olhei um porta retrato antigo;

Algum de nós já não sentia aquele amor.

Seus lábios estão petrificados e encardidos

De alguma coisa que o tempo esconde dentro de nós.


E hoje, quando cheguei do escritório,

Me olhaste, e foi pela última vez.

Cansou-se da poeira do apartamento,

E de assistir sempre aos telejornais.


Me disse decididamente um “adeus”

Que reprimira, quando a esperança era quase amor,

E essa palavra veio em câmera lenta,

E eu demorei pra ouvir e entender: adeus.

Adeus.


Me olhou como quem nunca me viu,

Me atravessou como se atravessam rios,

Fechou a porta, permaneci escuro,

Foi deixando um presente que nunca aconteceu,


Foi descendo aos poucos a escada,

Quis gritar, mas não tive coragem.

Meus olhos na janela, os teus na rua;

Já não necessitas lágrimas, és sublimação.

terça-feira, 8 de abril de 2008

cruzeiro do sul

Sou amigo das estrelas desse céu mais azul,

tenho uma constelação junto ao cruzeiro do sul,

tenho os pés na terra, e a terra firme dentro de mim.


Mas inda brota a flor silente, ensangüentada em meu jardim.

O meu sangue é luso-negro, ítalo-guarani.

Minha força é meu apego, vingança, sucuri.

Meus olhos não esquecem a cor da carne dos meus avós.


Mas inda brinco de cantor, poeta, sou guri

miolo mole, cabeça dura de jabuti.

E a cachoeira deságua a mata em meu coração.


Mas persiste um dissonante dilema no ar

quando se encerra o cerrado em cinza, fogo e carvão.

Na arrevoada da garça branca do pantanal:

no entardecer haverão onças e cobras, ou escuridão?

Ou só escuridão?

Ou só escuridão?

segunda-feira, 31 de março de 2008

Tudo Lixo

Tudo Lixo


Impossível percorrer as ruas

Sem temer o brilho escuro das armas, o assalto,

A sombra da pobreza, suja do asfalto.


Impossível percorrer as ruas,

E mesmo em meu quintal confortável,

Minha residência habitual, há o improvável:

Toneladas de lixo espacial, espaçonave descartável

Pairando distraída sobre minha cabeça,

Eu esperando que algo aconteça

Com a cabeça endinheirada dos homens

(pensando nas flores extintas sem nomes).


Impossível percorrer meu peito

Sem esbarrar na pesada culpa

De ser parte do defeito,

De ser quem nada faz, só se preocupa.


Impossível não supor que o homem

Tem por natureza, por instinto,

Mais a voracidade que o pensamento.


Impossível esquecer que a carne

Que ostento em meus ossos e gestos indiscretos

Não será adubo, ou comida, ou carne,

Mas lixo funerário,

Engavetado, empilhado, emparedado no concreto.


Impossível tapar os olhos, fazer de conta.

Impossível não temer o amanhã que desponta.


Vento temporal

Vento temporal


Um vento incomum e urbano soprou meu rosto.

Um vento somente possível embaixo de certas mangueiras,

Ali, na rua da minha casa, naquele asfalto tosco.

Optei então por ouvir a cidade, assimétrica em suas maneiras

De reagir aos meus passos. Assimétrica no cheiro, no gosto

Da terra seca dos canteiros, nas flores feitas em fileiras.


Na esquina falava-se das coisas e seus defeitos.

A tesoura podava as plantas, que pretendiam-se jardim

Inútil jardim, realçando a assincronia em meu peito,

Já que a ordem e a desordem uniam-se, refletindo em mim.


No movimento natural de procurar alívio nas nuvens

Avistei duas pombas no alto do telhado, sobre os homens,

Uma branca, outra preta, praticamente iguais.

A plena mistura das cores nos céus ocidentais.

Este ocidente desencontrado, ainda procurando pureza,

Certo do tempo, certo do erro, certo da certeza.


Bebo e respiro este ocidente cinza, tenho-o na pele,

Ainda sob o ingênuo epíteto de cicatriz ou mancha,

Mesmo que carne da mesma carne, há algo que repele

E não se assume, e, longe do equilíbrio, se desmancha.


O ocidente do século vinte e um é o filho do meio,

E já não cabe distinção do puro, do feio.

É tempo da liberdade nas dimensões, até nas astrais.

É tempo da pomba cinza voando com suas asas atemporais.


O destino inda é incerto

Feito as perguntas infantis sem resposta,

Que reluzem no abismo, e, discreto,

Eu vou indo, dou as costas.

terça-feira, 25 de março de 2008

Encontro

Encontro

Na mansão mental que crio pra me encontrar puro

escondo-me, revelo minha própria face,

oculta na fumaça de um querer óbvio e sintético.

Visto a mascara e a liberdade por trás dela,

implícita nas costas da muralha.

Fundo-me ao meu, para depois fundir-me ao todo.


Descarto as verdades inúteis,

agarro-me fortemente à incerteza,

à consciência do nada-pleno.


Até o equilíbrio exige desequilíbrio pra ser equilibrado,

até o certo, não pode ser apenas certo, por risco de estar errado.


Estou firmemente convicto da minha verdade,

temporal, oscilante, fiel,

equivocada, mas necessária.


Estou firme no meu caminho,

beiradeando o meio, e não a ele preso.

Flutuante, condizente com a realidade-minha.


Estou firme na paz pós-sexo, pro amor,

assexual, tântrica de sorrisos, diálogo quase uno,

no meu plúri-orgasmo,

maxi-satisfação:

corpórea, extracorpórea.

Afinidade existencial:

encontro.


Poética liberdade,

hipotética paz,


sobrevoam,

pousam, leves em meus ombros.